Conto
Salve-os
-
Vivá! Vivá, acorde, mana, por favor! - Dizia o indiozinho Ararê
para sua irmã mais velha. Vivá
significa forte como a natureza.
A índia acordou e sentou-se na
cama ainda sonolenta. Olhou para um lado vendo seu irmão Ararê com
os olhos escuros e arregalados para ela e depois para o outro
observando seu outro irmão Yahto comendo uma banana, mas com o olhar
distante.
- Vou lavar o rosto no riacho
aqui próximo e então você me mostra, está bem? - Disse Vivá
voltando a olhar pra o irmão com um sorriso manhoso.
Arerê todo alegre acompanhou a
irmã mais velha para o riacho que ela disse. Yahto, gêmeo de Ararê,
já tinha terminado de comer e acompanhou os irmãos para fora da oca
cujo teto tinha muitas folhas de bananeira. Vivá tinha treze anos
enquanto os gêmeos Arerê e Yahto tinham 8. Enquanto a curumim jovem
usava uma saia de pano e um top do mesmo material para cobrir os
seios que já cresciam em seu corpo jovem, os gêmeos usavam apenas
uma tanga. Os três possuíam cabelo preto, liso e curto e uma pele
morena por causa do sol. Faziam parte de uma pequena tribo no seio da
Amazônia, mas pelo visto tinham sido um dos primeiros a acordar
porque Vivá olhou em volta e não viu outros saindo das ocas.
-
Arerê, me mostre o que tanto quer. - Disse a curumim segurando na
mão do irmão. - Venha Yahto! - Completou em voz alta para o irmão
que os observava impassível.
Ararê significa amigo dos papagaios e Yahto significa Azul porque o
indiozinho geralmente irradiava calma como a cor azul.
Durante o trajeto, a índia
observava às vezes Yahto que os acompanhava. Seu irmão olhava para
as folhagens e para as cascas de árvores pelo caminho e estava muito
quieto.
- Aqui! - Exclamou Arerê à
irmã parando no caminho e fazendo-a olhar para uma grande árvore.
Yahto ergueu um pouco as sobrancelhas olhando a copa da enorme árvore
e os raios do sol a atravessava nquele início de dia.
Vivá ficou andando em volta da
árvore olhando as grandes raízes e galhos que pendiam na vertical.
Ficou impressionada.
- Olha isso aqui, mana. - Disse
Arerê se aproximando da irmã com uma substância branca e leitosa
nos dedos. Yahto também se aproximou do irmão e pela primeira vez
falou:
- O que é isso? - Indagou Yahto
para o irmão gêmeo.
- Sai da árvore. - Respondeu
Arerê.
Vivá aproximou o nariz e
cheirou afastando o rosto rápido e fazendo careta.
- Que cheiro estranho. - Disse a
jovem índia rindo um pouco.
Yahto também cheirou e sua
reação foi mostrar a língua e dizer que o cheiro era ruim.
Os três irmãos riram.
- Depois a gente volta aqui e vê
o que podemos fazer. Agora, vamos voltar e comer. - Disse a irmã.
Os gêmeos concordaram e foram
correndo, mas antes que Vivá os seguisse teve a impressão de ouvir
um estalo de madeira e olhou para trás. Apesar da idade, ela era
corajosa e se sentia responsável pelos irmãos mais novos. Comprimiu
um pouco os olhos e deu uns passos para frente.
- Pode sair daí. Eu não tenho
medo. - Disse a índia cruzando os braços.
Esperou, mas ninguém saiu do
meio das folhagens. Suspirou desapontada por pensar em um pouco de
diversão pela manhã e em seguida voltou correndo para se juntar a
seus irmãos. A tribo já estava acordada agora: algumas mulheres
amamentando seus filhos, outras descascando legumes, tecendo roupas e
outras tecendo cestos com fibras de madeira. Haviam crianças
correndo para lá e para cá brincando enquanto homens traziam frutas
que colhiam das árvores, verificavam flechas e outras armas.
- Avivá! Vem, mana! - Chamou
Arerê balançando os braços para ela na frente da oca. A índia não
viu Yahto. Provavelmente estava dentro da oca.
Avivá foi correndo e entrou na
oca se juntando a ele. Yahto estava agachado num canto comendo
jabuticaba. A índia se pôs a comer mamão enquanto Arerê comia
abacaxi. Ela cuidava dos seus irmãos desde que seus pais haviam
morrido. A tribo os ajudava, mas honrava muito a jovem índia por ter
maturidade para cuidar de dois irmãos. Ainda achava estranho Yahto
daquele jeito. Ele não era extrovertido como o irmão, mas não
ficava reservado daquela forma.
Ocorreu
um casamento à noite e a cerimônia era feita pela senhora mais
velha da tribo que chamavam de Lamona
(
protetora ). Avivá estava conversando com os noivos, mas
frequentemente olhava em volta para ver o que faziam seus irmãos
mais novos: Arerê estava brincando com outras crianças e roubando
frutas dispostas em folhas de bananeira, mas o que lhe deixou
aliviada foi ver Yahto aprendendo a tocar flauta com outro menino.
Não estava alegre, mas a questão de franzir o cenho enquanto
acompanhava o movimento dos dedos do outro menino com os seus na
flauta demonstrava interesse.
- Avivá.
A
indiazinha virou-se e ergueu a cabeça vendo a senhora Lamona
com
um pequeno sorriso para ela. Lamona estava trajando uma bata branca e
pulseiras coloridas, mas a pele enrugada e os cabelos brancos
mostravam sua idade avançada. Na verdade, toda a tribo estava usando
enfeites coloridos, pulseiras. colares e partes do corpo pintadas com
tinta vermelha, branca e amarela. Avivá estava apenas com dois
traços de tinta vermelha pintados em cada bochecha.
- Oi, vovó! - Exclmaou ela com
um pequeno sorriso dando-lhe um abraço. As crianças da tribo a
chamavam assim por respeito.
Lamona retribuiu o abraço e
pediu que a seguisse para sua oca. Avivá falou que precisava vigiar
seus irmãos, mas ela a tranquilizou dizendo que ficarão bem. Assim
que entraram sentaram cada uma em um toco de árvore usado como
banquinho.
- Como está, menina? - Indagou
a índia idosa para ela com a voz arrastada.
- Estou bem, vovó. Na verdade,
Yahto está me preocupado. Ele está muito quieto. - Disse Avivá
coçando os cabelos.
- Yahto fica desse jeito quando
percebe alguma coisa estranha ao seu redor. - Disse a idos
lentamente.
- Como assim, estranha, vovó?
A Lemona fez um pequeno sorriso
no rosto, levantou-se e foi até uma mesinha próxima. Como toda
criança, Avivá ficou curiosa levantando-se também e ficando na
ponta dos pés balançando de um lado para o outro tentando ver o que
a “vovó” estava fazendo. Assim que ela virou, a curumim
sentou-se rapidamente. A Lemona mostrou em suas mãos um colar com
pingente em formato de tartaruga feito de uma pedra verde e polida. A
curumim pegou-o, mas não entendeu o que era aquilo.
- O que é isso, vóvó? -
Indagou Vivá colocando o colar no cabelo.
A índia sabia e idosa riu um
pouco tirando o colar dos cabelos da menina e colocando-o no pescoço
dela.
- Se chama Muiraquitã, menina e
ele vai te proteger. - Disse a Lemona.
Aos poucos, a menina índia
sorriu para o amuleto e abraçou a idosa que retribuiu com outro
sorriso.
- Mas vovó, porque me proteger?
- Indagou a menina.
O olhar da índia sábia assumiu
um brilho estranho, mas ela não respondeu a pergunta. Conduziu Vivá
para fora para oca em seguida.
- Vá se divertir com seus
irmãos, menina. Você é forte, Vivá. Vai conseguir. - Disse a
idosa voltando para dentro de sua oca.
A menina virou-se e ficou
fitando a oca da Lemona refletindo no que ela tinha falado. O amuleto
vai protegê-la do quê? O que ela vai conseguir?
- Vivá?
A curumim virou-se vendo o irmão
Irerê olhando para seu colar curioso. O menino passou um dedo no
pingente em formato de tartaruga e depois voltou a olhar para ela.
- A vovó me deu. Disse que é
pra me proteger. - Respondeu Vivá. para o irmão.
Mas Irerê não parecia
interessado. Estava mordendo o lábio inferior de leve.
- O que foi, Irerê?
- Não consigo encontrar o
Yahto. - Respondeu ele.
A curumim olhou para todos os
lados e começou a andar pela festa segurando Arerê pela mão.
Finalmente, viram Yahto indo para a floresta. Vivá o chamou, ele se
virou olhou para ela por um tempo e tornou a entrar na mata. Vivá e
o irmão, ainda de mãos dadas, saíram correndo na direção dele.
Vivá, apesar da idade, era destemida, porém inconsequente.
Adentraram cada vez mais a mata e o som da festa foi diminuindo até
finalmente ficar tudo em silêncio que só era quebrado pelo som de
algum pássaro. Agora, pareciam estar no meio da mata. Arerê cutucou
o ombro da irmã e apontou para a frente: Yahto estava agachado perto
de uma árvore mexendo na terra.
- Yahto? - Indagou a curumim se
aproximando cautelosamente. Arerê vinha andando atrás da irmã.
Yahto virou-se olhando para eles
e ficou de pé.
- Avivá? Arerê? - Disse o
curumim com a voz um pouco baixa.
Tendo a certeza de que era
realmente seu irmão, Avivá se aproximou e o abraçou. Arerê fez o
mesmo. De repente, um som como de alguém correndo entre as folhagens
chamou a atenção deles. Avivá colocou Yahto atrás dela e Ararê
ficou do lado dele.
- Quem é? - Indagou ela.
- Avivá... - Começou Yahto com
a voz trêmula.
- Shhh! Calma, maninho. Eu estou
aqui e ninguém vai ferir você. - Respondeu ela.
- Avivá! - Gritou Ararê de
repente.
A curumim acompanhou o olhar do
irmão e sentiu um nó na garganta: uma criatura negra parecida com
um homem de braços e pernas compridos e olhos vermelhos os encarava.
- Corram! - Disse a curumim
pegando os irmãos um em cada mão.
Os três sentiam as folhas
batendo em seus rostos enquanto corriam. Em um determinado momento,
Ararê olhou para trás e viu a criatura os seguindo.
- Está seguindo a gente, mana!
- Gritou o índio à irmã.
- A gente vai morrer! - Disse
Yahto quase chorando.
- Niguém vai morrer!
Continuem...
Antes que pudesse terminar de
falar, os três irmãos curumins tropeçaram num tronco de árvore e
gritando rolaram pela terra que tinha na frente até caírem numa
espécia de caverna coberta. Seus irmãos estavam desacordados, mas
só para garantir que estam sozinhos, Avivá levantou-se um pouco
para fora daquela “cobertura” de terra e olhou para cima:
aparentemente estavam sozinhos. Preferiu dormir, mas tomaria
provisões pela manhã. A curumim acabou deitando de lado e, assim
que acordou, era de manhã e viu os irmãos um segurando o braço do
outro e olhando para frente.
- Vocês estão bem? O que foi?
- Indagou ela olhando de um para o outro. Ambos não estavam
assustado, mas surpresos.
Avivá olhou logo à frente e
viu um tamanduá-bandeira os encarando. Ela inclinou um pouco a
cabeça para o lado curiosa.
- Estão com fome? - Indagou o
animal com uma voz convidativa e fraterna.
Os três irmãos ficaram
boquiabertos fazendo o animal rir. Moveu a cabeça na direção
oposta fazendo sinal para que o seguissem. As crianças estavam com
fome e decidiram seguir o tamanduá. Assim que viram frutas em folhas
de bananeira puseram-se a comer. Assim que pararam de comer, ele se
aproximou mais um pouco.
- O que faziam nessa parte da
mata? Não é seguro. O Mal perseguiu vocês? - Indagou o tamanduá.
- É o nome daquele monstro
comprido? - Perguntou Ararê.
- É. Ninguém sabe como surgiu
e o que realmente quer. Só se sabe que quando o vir é preciso fazer
o que vocês fizeram. - Respondeu o animal. - Eu vou ajudá-los como
puder, crianças. Fiquem tranquilos. Me chamo Tuti.
Naquele dia, Avivá fez uma
lança moldando um pedra até que ficasse triangular e servisse de
ponta e amarrando com um cipó de uma árvore a um pedaço de árvore
grosso e o animal os mostrou onde tinha um riacho para que pudessem
beber água. à noite, Tuti os levou de volta aonde estavam dormindo,
mas ele e Avivá faziam turnos de vigília caso o Mal voltasse. E ele
estava de volta. Assim que viram movimento entre as folhagens, Avivá
e o animal se colocaram na frente de Arerê e Yahto. A curumim estava
com a lança apontada para a criatura.
- O que você quer? - Indagou a
curumim ameaçadoramente.
A criatura negra se moveu mais
um pouco para a frente e lentamente ergueu o braço direito e apontou
as garras para os gêmeos que se encolheram. Yahto já estava
chorando.
- Eu os quero. - Respondeu a
criatura com uma voz arrastada e fantasmagórica que fez os cabelos
da nuca da curumim se arrepiarem.
- Mal, volte para o lugar de
onde veio! Eles não serão seus! - Disse o tamanduá.
A criatura riu horrivelmente,
mas não era possível ver nenhuma boca se movendo. Apenas seus olhos
vermelhos piscavam às vezes.
- Yahto, maninho, pare de
chorar. Eu também estou com medo, mas acho que teremos de correr de
novo. - Disse Ararê para ele.
- Mas... - Disse ele com a voz
chorosa.
Arerê o levantou e viu a
criatura se aproximando mais e mais de todos eles.
- Não há como me vencer. Me dê
seus irmãos ou você e sua tribo será destruídos. - Disse a
criatura parada mais perto deles.
- Eu não vou sacrificá-los!
Vou protegê-los de qualquer jeito! - Gritou Avivá.
Assim que tentou ferir a
criatura com a lança, ela segurou-a com suas garras e jogou a arma
para longe.
- Vamos, criança. Eu estou com
fome! - Vociferou ele como um demônio.
- Venham! Corram, corram! -
Gritou o animal correndo no sentido contrário.
Os três irmãos seguiram o
animal por dentro da mata, mas ela estava ficando muito densa de novo
e para o desespero deles perderam Tuti de vista.
- Tuti? Tuti! - Gritou Avivá
olhando para os lados.
- Olha! - Gritou Yahto apontando
para a frente.
O Mal vinha na direção deles
de novo e estendendo a mão como antes. Avivá segurou os irmãos
pelas mãos e correram de novo. No meio do caminho, Arerê viu Tuti
parado olhando para eles.
- Mana, é o Tuti! - Disse ele à
irmã apontando para frente.
Os três o alcançaram e
correram junto com o animal pela mata. Avivá às vezes olhava para
trás vendo a criatura de relance. Tuti parou de repente batendo as
patas peludas. Tinha um penhasco na frente e um rio com pedras lá
embaixo. Viraram-se vendo a criatura chegar devagar.
- Agora, não tem para onde
correr, menina. Me dê logo seus irmãos ou destruirei você e sua
tribo! - Gritou a criatura negra.
- Eu não vou fazer isso! Como
vou acreditar que sabe da minha tribo? - Gritou a curumim para ele.
- Isso não é algo que uma
criança entenderia. Me entregue eles, agora! - Esbravejou a criatura
chegando mais perto.
- Você terá de entregá-los,
Avivá. - Disse o tamanduá tristemente.
- São tudo o que eu tenho,
Tuti! Eu não posso fazer isso! - Falou a curumim olhando para ele e
depois para os irmãos que já estavam chorando.
- Não há como derrotá-lo.
Precisa salvar sua tribo. Entregue seus irmãos para o Mal. - Disse o
tamanduá.
- Mas, eu... - Tentou dizer a
indiazinha, mas suas palavras foram se perdendo por causa do choro.
Avivá chorou um pouco, mas por
ser corajosa, pensou em algo que jamais imaginou que faria.
- Tome a minha vida pela da
minha tribo e dos meus irmãos. - Disse Avivá à criatura.
- Sacrificaria a sua vida pelos
seus irmãos? Acha que eu pouparia o restante depois disso? - Disse a
criatura com desdém.
- Por favor, Tuti. Assim que eu
me for, pegue meus irmãos e leve-os de volta à tribo. - Disse Avivá
com a voz afetada pelo choro.
A criatura foi se aproximando
mais, a curumim fechou seus olhos e...nada aconteceu. Ainda estava
ali. Seus irmãos tinham parado de chorar e Tuti olhava para ela.
- Muito bem, Avivá. - Disse o
tamanduá com sorriso na voz.
- O quê? - Indagou a indiazinha
sem entender.
Aos poucos, ouviu-se alguém
andando entre as folhagens, mas eram os homens de sua tribo e a
própria Lemona apareceu depois sorrindo.
- Vovó? - Indagou a curumim
ainda confusa.
A Lemona se aproximou agachou-se
e abraçou a curumim.
- Você provou ser uma guerreira
da tribo, menina. Salvou seus irmãos sozinha. - Disse a índia idosa
soltando-se dela.
- Mas, vovó, o...
Assim que olhou para trás viu
só seus irmãos. Tuti tinha desaparecido. Ela observou a expressão
de seus irmãos e viu que também não entendima o que tinha
acontecido.
- Você os salvou, menina. -
Disse a Lemona.
- Como eu os salvei se ainda
estão aqui? - Indagou a curumim.
A idosa foi até os irmãos dela
aproximando-os de si.
- Você os salvou querendo dar a
sua vida por nós e por seus irmãos - Disse a Lemona.
Os três irmãos foram levados
de volta à tribo e Avivá foi avisada de que seria treinada como
guerreira. Ela não entendeu o que aconteceu na mata, mas aprendeu
uma coisa: precisamos enfrentar o que nos aterroriza para vencermos.